Comitê solicita ao MPF fim de homenagens a ditadores no RN
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- 3 de abr.
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O Comitê Estadual por Memória, Verdade e Justiça do Rio Grande do Norte solicitou ao Ministério Público Federal (MPF-RN) que adote medidas para proibir homenagens a agentes da ditadura militar em locais públicos do estado. O ofício foi recebido pelo procurador da República Emanuel Ferreira na manhã desta quinta-feira, 03, na sede do Ministério Público de Mossoró.
A solicitação foi um encaminhamento decorrente da audiência pública realizada na noite da quarta-feira (2), na UERN, que debateu a espionagem em universidades de Mossoró durante a ditadura. Outro encaminhamento da audiência foi a criação de Comissões da Verdade na Ufersa e na Uern, com o objetivo de aprofundar as investigações sobre a repressão nessas instituições.
O pedido do Comitê é para que o MPF recomende ao Estado do RN e às prefeituras municipais medidas para alterar os nomes de ruas, bairros e instituições públicas que homenageiam agentes do Estado ou particulares notoriamente envolvidos em violações de direitos humanos durante a ditadura militar.
A solicitação, aponta o documento, está alinhada às recomendações da Comissão Nacional da Verdade (CNV), cujo relatório final, publicado em 2014, identificou 377 agentes do Estado responsáveis por crimes durante o regime e recomendou a necessidade de medidas concretas para evitar novas violações. Entre essas medidas, destaca-se a de promover a alteração da denominação de logradouros, vias de transporte, edifícios e instituições públicas que homenageiem pessoas envolvidas na prática de graves violações de direitos humanos.
No âmbito estadual, a Comissão da Verdade da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) também reforçou essa recomendação, considerando que a permanência de tais homenagens representa um desrespeito à memória das vítimas da ditadura e um obstáculo à efetivação da justiça de transição no país.
“Mesmo passados mais de dez anos da publicação do relatório da CNV, o Rio Grande do Norte ainda possui logradouros e instituições que fazem referência a figuras associadas ao regime militar. Ressaltamos que há uma legislação municipal que impede a alteração de nomes de logradouros após dez anos de consolidação, mas entendemos que tal norma não deve prevalecer sobre os princípios constitucionais do Estado Democrático de Direito, da dignidade humana e do compromisso com a verdade histórica”, diz o documento, assinado pela presidenta do Comitê Estadual por Memória, Verdade e Justiça do Rio Grande do Norte, a jornalista Jana Sá.
“O Ministério Público Federal, através da Procuradoria Regional dos Direitos do Cidadão (PRDC), vai analisar com muito cuidado essa prática atentatória às recomendações da Comissão Nacional da Verdade, que fragiliza os próprios pilares da justiça de transição, à medida em que confunde lembrança histórica com homenagens. Então, é um tema que certamente o Ministério Público Federal vai levar muito a sério e vai atuar com muito cuidado”, afirmou o procurador Emanuel Ferreira.
Audiência pública sobre espionagem e Comissões da Verdade da Uern e Ufersa
A audiência pública realizada na noite desta quarta-feira (2) discutiu as espionagens promovidas pelo Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão de inteligência criado no contexto da ditadura militar, na então Universidade Regional do Rio Grande do Norte (URRN) e na Escola Superior de Agricultura de Mossoró (ESAM) — hoje Uern e Ufersa, respectivamente. O evento ocorreu no auditório da Faculdade de Filosofia e Ciências Sociais (Fafic) da Uern.
“Foi um evento muito rico, com muitas participações, pessoas muito interessadas em discutir esse tema. E tivemos importantes encaminhamentos, como, por exemplo, o mais relevante de todos, a necessidade de constituição de Comissões da Verdade tanto na Uern como na Ufersa, para aprofundar cada vez mais esse debate e concretizar o direito à memória e à verdade. Então foi um evento muito positivo. A gente fica muito satisfeito e o MPF vai continuar acompanhando esses encaminhamentos e esses trabalhos”, afirmou o procurador da República.
No evento, o professor da Uern e vítima da repressão durante a ditadura, João Batista Xavier, relatou sua experiência.
“Eu comecei dando aulas e palestras sobre sindicatos e associações de classes. Aos poucos, o pessoal foi se aproximando na clandestinidade. Esse trabalho era feito com muita dedicação e esforço. E isso se refletia também na universidade. A gente tinha que, na sala de aula, combater esses distúrbios que aconteciam na nossa caminhada dentro da Uern”, contou.

Já Jana Sá homenageou os mortos pela ditadura e lembrou que é filha de dois militantes políticos perseguidos pelo regime.
“Meu pai, Glênio Sá, sobreviveu a três prisões, à tortura e à clandestinidade. Minha mãe, como tantas outras mulheres que ousaram resistir, enfrentou a perseguição do regime e carregou as marcas desse período por toda a vida. Cresci ouvindo suas histórias, entendendo que a versão oficial contava apenas uma parte – e, muitas vezes, a parte que interessava aos opressores”, relatou.
Ela criticou quem tenta reescrever a história da ditadura e pontuou que as perseguições não se restringiram aos grandes centros urbanos.
“O regime tinha um projeto de vigilância e controle que alcançou cada canto do Brasil, e Mossoró não foi exceção. A então Universidade Regional do Rio Grande do Norte, hoje UERN, e a Escola Superior de Agricultura de Mossoró, atual Ufersa, foram alvos constantes do Serviço Nacional de Informações. Estudantes, professores e trabalhadores foram monitorados, fichados e perseguidos por simplesmente pensarem e questionarem o regime”, disse.
“O aparato repressivo do Estado não apenas tentava sufocar a organização política, mas também buscava criminalizar o pensamento crítico e a produção de conhecimento. Relatórios do SNI comprovam que o regime acompanhava de perto a vida universitária em Mossoró, espionando eventos acadêmicos e movimentos estudantis. Mesmo nos anos 1980, já no período da chamada ‘abertura’, a repressão não havia cessado. A greve estudantil da Esam em 1985 ainda enfrentou o peso da repressão, demonstrando que a herança da ditadura não foi embora com o fim formal do regime”, continuou.
Representando a reitora da Uern, Cicília Maia, e o diretor da Fafic, Marcílio Falcão, o professor Fabiano Mendes comentou sobre os danos provocados pelos períodos de regime ditatorial.
“Nós tivemos nos últimos 100 anos dois grandes episódios de ditadura, de 1937 a 1945, e de 1964 a 1981, com períodos muito pouco longos de democracia que gerassem uma pedagogia democrática na própria população. Então, a gente sai de uma pedagogia ditatorial do dia a dia para logo cair em outra efetiva, disfarçada ou, pelo menos, não efetivada, como foi o caso do último governo federal”, disse.
O reitor da Universidade Federal Rural do Semi-Árido (Ufersa), Rodrigo Codes, reforçou o papel das universidades na preservação da memória e na promoção do debate democrático. Ele ainda criticou a formação da lista tríplice para reitores, instituída durante a ditadura.
“A Ufersa, ao lado da Uern e de outras instituições públicas, deve seguir sendo espaço permanente de reflexão sobre sua própria história, sobre a História do Brasil, enfrentando com coragem as contradições de um futuro diferente do passado que nos foi imposto. Se a ditadura usou o medo e o silêncio como armas, a democracia se fortalece pelo conhecimento, pela participação e pela liberdade”, declarou.
O chefe do Departamento de Filosofia da Uern, Francisco Ramos, parabenizou a iniciativa e destacou o papel das instituições na defesa da democracia.
“Nós temos que acreditar na potencialidade das nossas instituições, inclusive foram elas que, unificadas, conseguiram evitar um outro golpe no Brasil, no 8 de janeiro de 2023”, afirmou.
A deputada federal Natália Bonavides (PT) compôs a mesa e ressaltou que o debate sobre o período militar é essencial para toda a sociedade.
“Esses debates são muito importantes, e não é um debate do passado. O direito à memória e à verdade, claro, é também dos familiares, das vítimas sobreviventes, mas é fundamentalmente um direito difuso, que é de toda a sociedade. É o direito de cada um e cada uma de nós”, afirmou.
Espionagem
O SNI foi um órgão de inteligência criado em junho de 1964, no contexto da Ditadura Militar, e que desenvolveu espionagem em diversas instituições em todo país, incluindo as de ensino superior do município de Mossoró, segunda maior cidade do Rio Grande do Norte.
Os espiões atuaram especialmente na então Universidade Regional do Rio Grande do Norte (URRN), atual UERN, e na Escola Superior de Agricultura de Mossoró (Esam), conforme demonstram diversos documentos produzidos pelo SNI e atualmente disponíveis no Arquivo Nacional.
Dentre as ações acadêmicas que foram alvo dos “agentes” estão uma mesa redonda organizada pela Faculdade de Filosofia de Mossoró, em 3 de maio de 1982, cujo tema era “Partidos Operários no Brasil, ontem e hoje”, tendo contado com a participação de Salomão Malina e Haroldo Lima, então filiados ao PCB e ao PCdoB, respectivamente.
O SNI também promoveu intenso serviço de espionagem na “V Semana de Filosofia do Rio Grande do Norte”, ocorrida entre 01 e 05 de maio de 1984. Além das atividades acadêmicas, há relatórios sobre greves e a respeito do contexto político da cidade, produzidos pelo SNI na época, bem como documentos referentes à prisão de jovens considerados “subversivos”, na década de 70.
O órgão ainda repercutiu a prisão de Ricardo Torres de Carvalho, Jonas Rufino de Paiva, Francisco Aurélio de Araújo, Lourival Alves da Silva e José Henrique da Fé efetivada pela polícia de Mossoró em 1º de maio de 1970, dia do trabalhador, tendo em vista que eles estavam distribuindo panfletos considerados “subversivos”. Na avaliação do órgão, “estão os subversivos dispostos a tudo e procura solapar a ordem pública e induzir o povo contra a lei e os poderes constituídos”, mesmo em se tratando de exercício não violento da liberdade de reunião e manifestação.
Houve novo interesse do SNI pela “Semana de Filosofia do Rio Grande do Norte”, perante a qual “tem comparecido elementos de diversas organizações esquerdistas”, tendo o órgão monitorado João Batista Xavier, Professor de Filosofia e Estudos Sociais da então URRN, buscando obter a qualificação e outros dados do docente.



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